
Tese
apoiada pela FAPESP e premiada pela Capes desvenda os mecanismos que
possibilitaram ao Tribunal do Santo Ofício estabelecer uma vasta rede
de agentes no território (Fundação Biblioteca Nacional, RJ)
Como a Inquisição atuava no Brasil
20/12/2013
Por José Tadeu Arantes
Fonte: Agência FAPESP –
Como o Tribunal da Inquisição, sediado em Lisboa, conseguiu se fazer
presente até mesmo nos confins do Brasil colonial, coletando
denúncias, prendendo pessoas e levando-as para serem julgadas em
Portugal? Com quais instituições a Inquisição se relacionava? Que
setores sociais cooperaram com ela? Essas foram as perguntas que
inspiraram a tese "Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social",
apresentada por Aldair Carlos Rodrigues no Departamento de História
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, para a obtenção do título de doutor.
O estudo – orientado por Laura de Mello e Souza, como parte do Projeto Temático "Dimensões do Império Português" –
recebeu o Prêmio Capes 2013 (área de História) e o Grande Prêmio
Capes de Tese Darcy Ribeiro (que abrange as grandes áreas de Ciências
Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes e
Multidisciplinar-Ensino e Interdisciplinar), oferecidos pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do
Ministério da Educação (MEC).
"A principal conclusão foi que a
Inquisição conseguiu atuar no Brasil porque possuía mecanismos
eficazes e oferecia cargos que atraíam as elites da sociedade
colonial. O tribunal não tinha uma sede aqui, mas sua atuação se
ramificava por meio de uma rede de agentes criada na colônia", disse
Rodrigues à Agência FAPESP.
Segundo o pesquisador, os atrativos
para a formação dessa rede eram a distinção social e os privilégios
que seu membros passavam a ter. "Não era fácil se tornar um quadro da
Inquisição, porque essa instituição possuía vários dispositivos
bastante excludentes. Então, quem conseguia passar pelos filtros,
adquiria um status social destacado", afirmou.
Para os integrantes das elites da
época, tanto na Península Ibérica quanto nas colônias da América, era
muito importante provar a "limpeza de sangue". Isto é, provar que não
se pertencia às "raças" consideradas "infectas" (judeus, muçulmanos,
negros, indígenas).
E a Inquisição era tida como a
instituição mais rigorosa na apuração da "limpeza de sangue". Entrar
para seus quadros equivalia a apresentar a toda a sociedade um
atestado de "sangue puro". "Isso tornava o pertencimento à Inquisição
muito atraente. Por meio do 'estatuto de limpeza de sangue', a
Inquisição desempenhou um papel importantíssimo no processo de
formação e estruturação da elite social do Brasil durante o século
XVIII", informou Rodrigues.
Ele considera esta a grande novidade
de seu estudo. "A maioria das pesquisas já feitas sobre a Inquisição
teve por foco as vítimas. A minha pesquisa procurou investigar esse
outro aspecto, o da inserção social da Inquisição, do seu papel na
estruturação da sociedade brasileira, na constituição das hierarquias.
São duas abordagens complementares. Estudar a Inquisição sob o ângulo
da inserção social me permitiu entender como essa instituição pôde
durar tanto tempo. A Inquisição portuguesa foi estabelecida em 1536 e
só foi abolida em 1821, no contexto da chamada Revolução Liberal do
Porto", disse.
O início da atuação da Inquisição na
Península Ibérica pode ser mais bem compreendido quando se considera
que os Estados que estavam se estruturando nesse período se
fundamentavam na unidade da fé. Constituídos no contexto da luta de
cristãos contra muçulmanos, identificavam-se profundamente com a fé
católica. A sobrevivência de outras confissões religiosas no mesmo
território punha em xeque essa unidade da fé, e, por extensão, a
unidade política.
"A criação de instituições
encarregadas da repressão violenta às dissidências religiosas, como
foram os tribunais da Inquisição espanhola e portuguesa, se inseriram
nesse contexto", explicou Rodrigues.
Já a sobrevivência desses mesmos
tribunais e de seus aparatos em épocas tão tardias quanto a primeira
metade do século XIX – e não apenas nas metrópoles ibéricas, mas
também nas colônias americanas – exige outro tipo de explicação. E,
neste caso, o atrativo social decorrente da aplicação dos "estatutos
de limpeza de sangue" e uma série de privilégios, como a isenção
fiscal, ajudam a entender como essa instituição pode estruturar uma
vasta rede de agentes que perpetuou sua atuação.
"A chancela de 'limpeza de sangue'
que o pertencimento aos quadros da Inquisição proporcionava exercia
enorme atração sobre as elites coloniais – tanto aquelas que já
estavam consolidadas quanto as emergentes. Para se ter ideia, segundo o
meu levantamento para o século XVIII, havia, em toda a colônia,
aproximadamente 200 comissários da Inquisição no setor eclesiástico.
Na mesma época, o número de agentes civis ligados à instituição
chegava a cerca de 2 mil – 457 deles apenas em Minas Gerais", sublinhou
Rodrigues.
Conforme ele, esses agentes civis,
chamados de "familiares do Santo Ofício", eram, principalmente,
pessoas que estavam enriquecendo a partir de atividades comerciais,
mas ainda não dispunham de status social. Para tais pessoas, entrar
para a Inquisição era uma forma rápida e eficaz de ascender
socialmente.
"Quando focamos a análise apenas no
número de pessoas sentenciadas, esses mecanismos de inserção profunda
da Inquisição na trama social tendem a passar despercebidos. Minha
pesquisa me fez perceber que essa instituição estava muito mais
enraizada na sociedade colonial do que se supunha", disse.
Rodrigues passou cerca de nove meses
estudando a vasta documentação existente no arquivo da Torre do
Tombo, em Lisboa – primeiro com o apoio do Instituto Camões (Cátedra
Jaime Cortesão), depois com o apoio da FAPESP. Um dos focos desse
estudo foi o sistema de comunicação estabelecido entre o Tribunal da
Inquisição, em Lisboa, e a rede eclesiástica instalada no Brasil.
"Estudei 1165 registros de
correspondência expedida no século XVIII. E pude observar que havia um
sistema de comunicação eficiente ligando o Tribunal de Lisboa ao
território do Brasil, um sistema profundamente assentado na hierarquia
institucional das dioceses", disse.
"Cada diocese dividia-se em várias
comarcas eclesiásticas, que não necessariamente coincidiam com as
comarcas civis; as comarcas, por sua vez, dividiam-se em paróquias; as
paróquias, em capelas. Quando a Inquisição distribuía um edital
impresso com o objetivo de coletar denúncias, esse edital tinha que
ser lido no final da missa e, depois, afixado na porta da igreja ou na
porta da sacristia, permanecendo ali até a chegada de um novo
edital", detalhou.
No caso do Centro-Sul, os editais
chegavam ao Rio de Janeiro. E, dali, eram distribuídos para toda a
região. A partir da sede de cada diocese, os impressos chegavam às
comarcas eclesiásticas. O "vigário da vara", que era o principal
agente da comarca, os encaminhava às paróquias. E os párocos os
repassavam às capelas. Quando o capelão lia o edital, ele tinha que
assinar um recibo, informando a data, e em alguns casos até mesmo o
horário da leitura do documento.
"Esse mecanismo permitia que, desde
Lisboa, a Inquisição tivesse pleno conhecimento de todo o caminho
seguido pela correspondência. E, ao longo do tempo, esse fluxo foi
sendo otimizado", afirmou Rodrigues.
Além disso, havia a cooperação da
justiça episcopal. Os agentes dos bispos não se encarregavam da
perseguição aos "delitos de heresia", apenas aos "delitos morais".
Mas, quando deparavam com alguma suspeita de heresia nas instâncias do
tribunal episcopal, transmitiam a denúncia a Lisboa. E os prelados
dispunham de um mecanismo suplementar de imposição da ortodoxia
católica: as "visitas diocesanas".
"O bispo saía em viagem, percorrendo
toda a sua diocese, de freguesia em freguesia, e inspecionando o
comportamento do clero e da população. Uma de suas funções era
conferir as portas das igrejas ou das sacristias para verificar se os
editais da Inquisição estavam ali afixados. Caso não estivessem, havia
penas para punir o responsável por essa "falta". Isso permitia que o
inquisidor, em Lisboa, tivesse controle até sobre as portas das
igrejas do Brasil", enfatizou Rodrigues.
Esse mecanismo, antes pouco
conhecido, foi agora desvelado pela tese de Rodrigues. "Espero que o
meu trabalho contribua para a reformulação dos livros didáticos,
eliminando a falsa ideia de que a Inquisição praticamente não esteve
presente no Brasil", afirmou.
A publicação em livro, também com apoio da FAPESP, está agendada para 2014.
Mais informações sobre o Grande Prêmio Capes de Tese 2013: www.capes.gov.br/36-noticias/6691-melhores-teses-defendidas-em-2012-sao-premiadas-em-brasilia